Autarquias locais em Angola um contributo para a sua compreensão - Manuel G. Manjolo

 Luanda - Através deste artigo honra-nos tecer algumas considerações que reputamos essenciais na percepção do fenómeno autárquico à luz do panorama jurídico angolano. Tal tarefa afigura-se necessária num contexto em que Angola experimenta reformas graduais ao nível do seu direito positivo (abarcando as normas substantivas e adjectivas), bem como em sede de toda dinâmica de funcionamento da máquina administrativa, procurando desse modo, alcançar níveis aceitáveis na prossecução do interesse colectivo.
Fonte: Club-k.net
Hoje a convergência em torno da inoperância de um modelo de administração altamente centralizada é ponto assente, traduzindo prejuízos incalculáveis para o Estado angolano e desconforto para os cidadãos com quem as entidades administrativas interagem diariamente na busca de soluções para uma panóplia de necessidades primárias e secundárias. Um olhar atento para o actual sistema de governo que emergiu com a Constituição de 2010 doravante (CRA), leva-nos a inferir tratar-se de uma opção constitucional avessa à total descentralização do aparelho estadual, na medida em que conferiu ao chefe do Executivo competências diríamos excessivas, o que permite a este órgão ser o centro decisório no tocante ao exercício governativo, fazendo levantar uma série de indagações sobre a sua manutenção num futuro próximo.

Não obstante, o legislador constituinte ter consagrado de forma expressa a partir do título VI do capítulo I “ as bases do poder local ”, donde sobressaem as autarquias locais enquanto formas organizativas do poder local, que mais desperta pronunciamentos numa altura em que do ponto de vista material ainda não foram institucionalizadas nas distintas circunscrições do território nacional, constituindo hoje a tónica do discurso político e jurídico, diante da ampla necessidade e vantagens que se extraem do seu funcionamento. É nesse contexto que uma abordagem geral sobre o sentido e definição real de autarquias se impõe, com vista a facilitar a sua percepção, é o que nos propusemos fazer já nos pontos que se seguem.

(i) Enquadramento
Em consonância com a sistematização perfilhada pela Constituição, as matérias relativas às autarquias locais foram consagradas no capítulo II, onde o legislador constituinte encarregou-se de atribui-las dignidade constitucional, o que seguramente traduz o reconhecimento desta forma de organização do poder local que dispõe de um modelo de governação local consentâneo com os grandes desafios que os agregados de pessoas suscitam dentro das circunscrições territoriais a que estejam inseridos. Dentre o rol de matérias vertidas no âmbito do Capítulo II, avulta sublinhar, a noção de autarquias na lógica do legislador constituinte, as categorias de autarquias locais, as atribuições, os órgãos, a tutela administrativa (de legalidade), a questão atinente à solidariedade e cooperação entre as autarquias locais, e não menos importante, o princípio do gradualismo, situado nas disposições finais e transitórias, concretamente no título VIII, isto é nos termos do artigo 242.

A par da Carta constitucional contendo em termos gerais orientações indispensáveis na materialização deste imponente desiderato de criação de autarquias, considere-se o facto de ainda não existir no plano infraconstitucional um diploma que regule de modo clarividente o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento dos órgãos afectos às autarquias locais. Acredita-se que em breve se possa colmatar tal vazio legislativo, sendo que até lá, aguardamos com algum entusiamo que se dê esse passo fundamental.
(ii) Definição de autarquias locais

Da leitura do disposto no artigo 217 da CRA resulta que as autarquias locais “são pessoas colectivas territoriais correspondentes ao conjunto de residentes em certas circunscrições do território nacional e que asseguram a prossecução de interesses específicos resultantes de vizinhanças, mediante órgãos próprios representativos das respectivas populações”.

Da noção supra, oriunda do texto constitucional convém recortar os seguintes elementos: 1) Pessoa colectiva territorial; 2) Circunscrição territorial; 3) Agregado de pessoas; 4) Prossecução de interesses específicos; 5) órgãos próprios representativos das populações. É impossível ter uma ideia transparente sobre autarquias locais, sem que antes, se faça uma viagem ainda que sintética por razões metodológicas, em volta dos seus traços identificadores. É o que apraz-nos detalhar seguidamente.

 Pessoa colectiva territorial
A começar pelo primeiro elemento respeitante as pessoas colectivas territoriais, importa ter presente que as pessoas colectivas públicas são entidades criadas pelo Estado com o intuito primacial de prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e garantias legais reconhecidas aos cidadãos, verdadeiros titulares do património público que é gerenciado. Para o cumprimento cabal de sua vocação, é reconhecida às pessoas colectivas públicas um conjunto de atribuições proporcionais aos objectivos que visam atingir, estando igualmente submetidas à deveres que os seus órgãos devem acatar no exercício das funções públicas que lhes foram acometidas. A dogmática jurídico- administrativa distingue várias espécies de pessoas colectivas, destacando-se as autarquias locais e as regiões autónomas. Sublinha-se igualmente três tipologias de pessoas colectivas públicas : 1. pessoas colectivas de população e território; 2. pessoas colectivas de tipo institucional; 3. E por último as pessoas colectivas de tipo associativo. As autarquias locais enquadram-se no tipo de pessoas colectivas públicas de população e território. Quanto ao regime jurídico das autarquias locais para Angola, destaca-se o previsto na Constituição, bem como àquele que há- de –ser fixado pela lei das autarquias locais, sem perder de vista algumas normas respeitantes ao procedimento aplicável à actividade administrativa em Angola

 Circunscrição territorial
Outro elemento acima apontado tem que ver com a circunscrição territorial, donde o substrato da autarquia local é um agregado de pessoas definido pela residência em certa circunscrição do território do Estado (cfr. Marcello Caetano 1982:309). É no âmbito de uma parcela ou fracção do território onde os órgãos das autarquias locais devem desenvolver o conjunto de atribuições tendentes a prossecução dos interesses do agregado de pessoas ali residentes. Logo, também se infere que o território delimita a jurisdição da autarquia local. Outra nota de grande relevância na interpretação deste elemento fulcral no conceito de autarquias locais, tem que ver precisamente com a circunstância de os municípios não apresentarem características semelhantes, sendo imprescindível uma ponderação em volta das suas potencialidades económicas, extensão territorial e densidade populacional, o que certamente ajudará a perceber que alguns municípios possuem uma densidade populacional superior aos outros, como também apresentam uma extensão territorial complemente diferente dos demais. As potencialidades económicas de cada região constituem um factor a não ignorar, porque em rigor, algumas circunscrições do território nacional têm no seu solo e subsolo ou ainda a nível do mar, enormes riquezas que até então têm servido em grande monta para o desenvolvimento de toda Angola.
Alguns municípios quase que não dispõem de recursos naturais, habilitando-nos assim a afirmar categoricamente “ a posição vantajosa de uns em detrimento de outros”, pese embora, por força do princípio da igualdade enquanto expressão constitucional de suma relevância, todos os cidadãos devem ser tratados com igualdade e nenhuma discriminação deve ser aceita, transpondo- se essa realidade a nível do tratamento dos distintos municípios.

Essas particularidades acima cogitam uma reflexão incisiva em todo processo de institucionalização das autarquias, sendo que o argumento da exclusão de alguns municípios num primeiro momento na lógica do executivo, nem sempre colhe, porque existem países com quem Angola tem firmado laços de cooperação, cujas regiões autárquicas não contam com grandes riquezas naturais, nem tão- pouco com uma capacidade extraordinária de arrecadação de receitas, ainda assim são autarquias locais, com homens e cérebros a funcionar em prol do desenvolvimento das mesmas regiões.
 Agregado de pessoas

Em relação a este elemento o importante a reter é que a população residente na circunscrição territorial em que está inserida a autarquia, é que constitui grosso modo o agregado de pessoas com um mérito assinalável nos objectivos a serem prosseguidos, na medida em que os órgãos autárquicos ao desenvolverem o conjunto de atribuições constitucionais e legais, serão compelidos a gerenciar interesses das populações que os elegeram por sufrágio universal, igual, livre, directo, secreto e periódico.

Deste elemento decorre uma importante vinculação dos órgãos representativos das autarquias locais em relação aos cidadãos, com quem devem interagir e administrar seus interesses. Ora, havendo quebra de expectativas no exercício do mandato conferido por representação, obviamente que tal facto produzirá a consequência desastrosa de já não puderem vir a ser eleitos em próximos pleitos eleitorais. Daí que as autarquias locais tem como vantagem, o facto de proporcionarem a competitividade entre os órgãos eleitos, demonstrado trabalho, competência para merecerem total confiança de quem os elege. Diferentemente do que ocorre na actualidade em que os administradores municipais são eleitos pelos governadores provinciais, nem sempre traduzindo os verdadeiros anseios das populações que residem habitualmente naquela circunscrição municipal.
 Prossecução de interesses específicos

Os órgãos autárquicos não prosseguem outros interesses que não sejam dos cidadãos ali residentes, aliás, estes são eleitos para levarem a cabo um conjunto de tarefas que se incorporam nos desafios comuns da sociedade. A transformação das administrações municipais em autarquias acarretará desde logo, um conjunto de mudanças, das quais se apontam a consagração de um novo regime jurídico destas pessoas colectivas públicas, dotadas de personalidade jurídica que a lei lhes reconhece, bem como um património próprio a ser definido pela lei das autarquias locais. A tudo isso acrescenta-se um outro dado, respeitante ao princípio da descentralização administrativa que é a pedra angular de tudo funcionamento e organização das autarquias locais, garantido por essa via maior independência a estes entes que já não estarão directamente vinculados às orientações derivantes dos órgãos do Poder central do Executivo angolano, sem embargo de estarem sujeitos a tutela administrativa, com vista a aferir-se o cumprimento ou incumprimento da lei, no que toca às directrizes que serão traçadas pela lei das autarquias locais.

 Órgãos próprios representativos dos cidadãos~
A dignidade constitucional atribuída aos interesses das populações espalhadas nas distintas circunscrições do território nacional de Angola, implica o surgimento de representantes locais, com importantes funções na satisfação de tais interesses, razão pela qual as autarquias locais são dirigidas por órgãos. Estes, constituem o último elemento do conceito de autarquias a que o legislador constituinte reportar-se nos termos do postulado no artigo 220, n.1 da CRA, onde se assinalam os seguintes: 1. Uma assembleia dotada de poderes deliberativo; 2. Um órgãos executivo colegial; 3. Um presidente da autarquia local.

A assembleia da autarquia local deverá estar constituída por todos os representantes da circunscrição territorial do município. Ao órgão executivo colegial integrará o seu presidente e os secretários por si nomeados. O presidente da autarquia é o órgão que administra a autarquia, considerado o cabeça de lista mais votado pela Assembleia, tal como consta do n.4 do artigo 220. da CRA.

Conclusão
A tudo quanto foi realçado nos pontos anteriores, conclui-se que o debate sobre as autarquias locais em Angola deve começar por valorizar a actividade de conscientização às populações sobre o real sentido do que se quer institucionalizar. Não se pode dar passos maiores do que as pernas, o que pressupõe dizer que aos cidadãos angolanos deve-se informar e esclarecer o que é de facto uma autarquia local ? Como devem funcionar? Quais são as atribuições dos órgãos pertencentes às autarquias locais? Quais são os seus órgãos? Como deverão coabitar os actuais governos provinciais em relação aos novos entes autárquicos a serem institucionalizados, haverá relação de subordinação? Estas e outras questões devem prima facie ser do domínio dos cidadãos, para posterior promoção de uma discussão nacional inclusiva sobre o processo de institucionalização, porquanto, o cidadão não pode debater uma realidade que é lhe completamente estranha.
Portanto, nesse artigo que agora colocamos ao conhecimento de toda comunidade angolana, pretendemos simplesmente fazer um enquadramento constitucional das autarquias locais, sem deixar de detalhar os elementos presentes do conceito de autarquias locais, como ponto de partida para a percepção do fenómeno, comprometendo-nos em próximos exercícios dar sequência com a II PARTE DESTE BADALADO DEBATE.
“ Os tempos são outros ”
Manuel G. Manjolo
“Jurista - Especialista em Direito Administrativo ”

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